quarta-feira, 28 de março de 2018

Sr. Smith

É domingo. Tarde de sol ardido na Paulista.
Muita gente e muito barulho, músicos, bandas
e DJs disputando o espaço físico e sonoro com
consequências danosas aos ouvidos de quem
tem que ficar no mesmo lugar das 5 da manhã
às 6 da tarde. Mas vale tudo pela arte
(Não, não é quase tudo. É tudo mesmo!)
A banca de poesia lá, estrategicamente montada
na sombra de uma grande árvore e eu ali,
distribuindo poesia para quem se dispõe a aceitar.
Entre uma música dançante dos anos 80 do DJ ao
Lado um blues do Cream de uma banda do outro
lado da rua e o som maneiro do Kaká Morais cantando
Nei Matogrossso mais a frente, chega o Sr Smith
em nossa banca. Um pequeno bag de instrumento
nas costas, talvez um violino ou um banjo, pela
roupa e estilo dificilmente seria um cavaquinho.
Usava uma jaqueta jeans com vários escudos
costurados, barba curta e um irresistível e pesado
sotaque americano.
Poesia se vende conversando, então apresentei
meu trabalho: Poesias grátis, poesia no azulejo,
brochuras com poesias, outras com prosa poética
de histórias da Paulista.
Foi logo falando que era americano e que estava
fugindo do Trump. Queria troca-lo pelo
Temer mas nenhum brasileiro aceitava!
Depois de olhar as peças perguntou:
- Por que as brasileiros não colam essas obras
na parede deles? Ficam colando pôster de Mick
Jagger, aquele cara feio!
Eu só sorri!
Olhou uma peça em azulejo chamada
“E Deus, que quem criou?”
Disse:
- Tem uma autor inglês, do qual não me lembrar
o nome - daqui cinco minutos, quando não fizer
diferença, eu lembra - que diz que o homem cria
os deuses quando precisa deles, depois, quando
não faz mais diferença ele os abandona. Então esses
deuses ficam vivendo numa mundo paralela,
nos assombrando. Acho que se criou deus tem
que usar!
Deu mais uma olhadinha para mim, sorriu e foi
embora.
Eu pensei comigo:
Nunca criei deus nenhum, não tenho nenhum
para usar e nem uso os que outros criaram.
Mas não tenho nenhum problema em dizer que se
você criou ou crê nos seus, pode usar sem pudor.
Obrigado Sr Smith, mas quem é mesmo esse autor inglês?
Fiquei curioso (se alguém souber me avisa).
db (21/03/2018)

quarta-feira, 14 de março de 2018

Sobre religião e loucura

Imagine uma única pessoa,
na rua,
pregando a devoção à um velho boneco de plástico.
Ele anda entoando cânticos de adoração.
Faz reverências ao boneco, se curva diante dele e tenta convencer todos a fazer o mesmo. 
Jura que ele é o salvador e o único a ser seguido.
Levanta o boneco ao alto e o mostra, com orgulho.
Diz que quem não adorá-lo será queimado vivo.
A pessoa incomoda, é taxada de louco e é enviada, pelas autoridades para um manicômio.
Imagine muitas pessoas,
na rua,
pregando devoção à uma velha imagem de barro.
Eles andam entoando cânticos de adoração.
Fazem reverências à imagem, se curvam diante dela e tentam convencer todos a fazer o mesmo.
Juram que ela é o Salvador e o único a ser seguido.
Levantam a imagem ao alto e mostram, com orgulho.
Dizem que quem não adorá-lo arderá no fogo do inferno.
Aceitas como pessoas boas e sensatas voltam tranquilas para casa.
Será a loucura apenas a religião de uma pessoa só?
db (03/2018)
(obrigado Pirsig)

Um Jab

Um jab 
Dilacerou meu
Supercílio 
E ensinou
Que ninguém vive
A experiência alheia
Um joelho ralado
Com sangue escorrendo
Pela canela
Avisou a hora
De ficar calado
A contagem do juiz
Que eu ouvi baixinho e
de longe (até 10)
Fez entender
Que há tempo de
Brigar e há tempo
de se recolher
É hora do curativo
Mercúrio e esparadrapo
É hora de esperar sarar
Os hematomas
E quem sabe
Dar a mão
Depois
Para os que ainda
Não aprenderam
Apesar da luta
db (03/2018)

terça-feira, 13 de março de 2018

Até o fim


Até o último grito
O último suspiro
O último sussurro
O último berro
O último tiro
O último atrito
Até o derradeiro pedido
O finalmente perdido
O tristemente esquecido
O loucamente iludido
Até que o pé se machuque
Que o joelho fraqueje
Que as costas se arquem
Que a lembrança se apaque
Até que gelo derreta
Que fogo se acabe
Que a ilusão feneça
Que se perca a cabeça
Até que o fim aconteça
Até que não reste mais nada
Depois da curva da estrada
ou no fim da picada
Até que dia não haja
Que a noite se esconda
Que a tarde se leve
Que a manhã anoiteça
Ainda assim
Mesmo que no improviso
Por você e por mim
Continuar é preciso
db (20/02/18)
para Fernanda

Idolatrando a dúvida

Tento respeitar a todos. Os próximos, os distantes e incluo aqueles que tem idéias divergentes da minha.
Admiro mais alguns, é certo, mas torço para que todos eles domem seus demônios assim como luto para domar os meus.
(Todo mundo tem um demônio dentro de si)
Observo que alguns, mesmo inconscientemente, fazem mal a outros, as vezes na certeza de ajudar, as vezes por serem dominados pelo egoismo. Desejo que tentem se entender e se entendendo sejam melhores. Temo por aqueles que são atingidos pelo mal destes e não têm como se defender.
O mal inconsciente é pior que o mal proposital, contra este é mais fácil lutar pois é aparente. Já aquele deixa à deriva a compreensão. Ele acontece sem ser percebido por quem faz, mas atinge com a mesma intensidade a quem recebe.
Penso que a certeza de estar certo muitas vezes é a origem do mal, então idolatro a incerteza na esperança de que a dúvida me oriente.

db

Amigo paralelepípedo


Quando eu era criança
Eu tinha um paralelepípedo
De estimação
Era desses comuns
Que usavam para calçar
As ruas no interior
Por ser paralelepípedo
Tinha seis lados
Cor de pedra
E uma personalidade dura
Eu tinha muito asseio com ele
Lavava com água e
sabão todos os dias
Ele tinha nome, mas não
Passeava comigo
(talvez pelo peso)
Amigos humanos eram raros
Por isso era ele quem ouvia
Minhas histórias
E guardava meus segredos
Companheiro fiel, nunca contou
Nenhum deles a ninguém
Ele sabia de tudo e
Eu nunca soube nada dele
Introspectivo, calado
Ficava ali, só ouvindo
Quantas vezes hoje
A gente deseja
Um amigo que só nos ouça
Não diga nada e guarde
Nossos segredos?
Um paralelepípedo
As vezes faz falta
Você acha estranho
Ter um amigo paralelepípedo?
Então talvez você tenha
Esquecido como é ser criança
Ou talvez tenha tido mais
Amigos humanos que eu.
db