segunda-feira, 9 de abril de 2018

Vozes


Vestiu a camisa remendada
e a única calça que estava
dobrada dentro da caixa 
velha e amassada de papelão
Calçou os chinelos. Penteou
o cabelo com o pente de plástico
amarelo que estava no
bolso da calça olhando
para o espelho pendurado
na parede sem se reconhecer
Olhou os companheiros
ainda dormindo nas outras
camas do quarto
Pegou a carteira surrada,
conferiu os documentos,
respirou fundo e controlou
a lágrima do canto do olho
que teimava em escorrer
Imaginou o que diria na
despedida para os funcionários
do sanatório, treinou mentalmente
as palavras, com medo que
descobrissem que ainda
não era são e que aquelas
vozes, por hora sob controle,
ainda o perseguiam
Com medo de que percebessem
sua insegurança repetiu as palavras
com todo o cuidado
Seguiu em direção à porta que
já estava aberta, parou, olhou
mais uma vez para o quarto
como que num último adeus
Fechou a porta atrás de si e
seguiu para o grande portão
que dava para a rua
olhando para os muros
com pintura velha e frases
desconexas pixadas
Já no pátio, puxou de dentro do
saco plástico que levava seus
pertences um maço de cigarros
Pediu fogo ao guarda da saída que
lhe deu uma caixa de fósforos
Acendeu o cigarro puxando com
força a fumaça e a segurando
no peito longamente
O guarda olhando fixamente para
seus olhos lhe falou:
"Boa sorte, você não é mais louco"
Ele estremeceu.Tinha esquecido
as palavras tão incansavelmente
ensaiadas
Se afastou sem responder e após
alguns passos em direção à rua parou,
fechou os olhos e ouviu novamente
aquela voz
A mesma voz que por tantos
anos o tinha atormentado desta vez
o orientou na resposta
Virou vagarosamente para o guarda
e disse em voz alta:
"O homem que pensa não ser louco
vive em eterna ilusão"
Disse e seguiu seu caminho
Confuso, o guarda o acompanhou
com o olhar até que ele virasse
a primeira esquina, entrou novamente
e nunca mais esqueceu essa frase
db (abril/18)